¬ E uma camisa, és capaz de passar?
¬ Acho que sim. Não há de ser muito difícil.
¬ Por acaso é. É das coisas mais difíceis de passar a ferro, uma camisa. Mas pronto, achas que és capaz?
¬ Se é das coisas mais difíceis, por que é que me pedes para passar precisamente a camisa?
¬ Eu não te estou a pedir. Estou a perguntar se és capaz. Calculo que não, mas pergunto à mesma.
¬ Isto parece conversa de malucos.
¬ Eu é que estou a dar em maluca ao ver a quantidade de coisas que tu
não sabes fazer. Comecei pelas simples. Já vi que não sabes. Pode ser
que sejas bom nas complicadas.
¬ Já te disse que não sei passar a ferro.
¬ Não. Tu disseste que não sabes passar T-shirts nem calças. E quando te
perguntei se nunca tinhas aprendido, ficaste ofendido. Ora, as calças
de ganga devem ser a coisa mais simples de passar a ferro. Mas fácil do
que isso, só se for um lençol. Mas tu, nem isso.
¬ Lembra-me por que é que estamos a ter esta conversa.
¬ Porque namoramos há quatro meses, tu tens mais de 40 anos, já foste
casado e eu nunca te vi a mexer uma palha em casa. E agora achei que era
boa ideia esclarecer o assunto.
¬ Porquê agora?
¬ Porque ontem voltaste a falar em vivermos juntos.
¬ O que é que uma coisa tem a ver com a outra?
¬ Deves estar a brincar. Gosto muito de ti, mas achas que vou meter em
minha casa uma pessoa que não sabe cozinhar? Que não passa a ferro, não
limpa o pó…
¬ Mas tu queres um namorado ou uma empregada?
¬ Eu quero uma pessoa com quem possa partilhar tarefas. Também quero
partilhar a vida, a cama, as refeições, rebeubéu, pardais ao ninho. Isso
é tudo muito bonito. Mas tem de ser alguém que se mexa.
¬ Já sabias que não sou muito prendado nas lides da casa.
¬ Eu já sabia que és um menino e que nunca fizeste nada em casa porque a
tua mãe, as tuas irmãs e a vossa empregada faziam tudo. Tu e o teu pai
eram uns lordes. Mas não sabia que tu nem sequer sabes estrelar um ovo.
Pensei que não gostasses muito. Mas na verdade não sabes.
¬ Nunca precisei. E vais ficar chateada comigo por causa disso?
¬ Chateada? Eu?! Não. Vou é pensar trinta vezes antes de me meter na
aventura de viver contigo. Tu é que estás habituado a criadas, não sou
eu.
¬ Não sei passar camisas, mas sei fazer outras coisas.
¬ Ah sim? Então quais, ó senhor homem? Estás a falar de bricolage? O que é que tu sabes fazer? Sabes mudar uma torneira?
¬ Não, isso não. Para isso chamo um canalizador.
¬ E usar um berbequim? E fazer uma puxada de luz e montar uma tomada? E
tapar uns buracos na parede para a pintar? Sabes? Se me vais dizer que
és um artista a mudar lâmpadas, eu vou-me rir. Porque isso faço eu. Isso
e as outras coisas todas. E também escusas de dizer que sabes aparar a
relva porque eu não tenho quintal.
¬ Sei tratar do carro. Sabes fazer isso?
¬ Tratar de um carro? Correias de distribuição, folgas nos foles,
ignição, discos de travão…? Isso não conta para o currículo de casa.
Para isso vou a um mecânico.
¬ Estás mesmo a ponderar o nosso futuro em função do que eu faço em casa?
¬ Estou. E se outras mulheres fizessem o que eu estou a fazer, poupavam
muitos dissabores. Para tua informação, sintonizar os canais da
televisão e garantir que está tudo bem com o wi-fi não é grande ajuda
hoje em dia.
¬ Se calhar devias queixar-te à minha mãe.
¬ Eu? Tu é que devias. E agradecer-lhe pela educação que não te deu. Ao
menos sabes ir às compras? Escolher fruta. Comparar preços? Ver a melhor
carne?
¬ Não.
¬ Então, além do sexo e de perceberes de música e de cinema, tu serves para quê, ao certo…?
Paulo Farinha, texto retirado daqui
postado cá porque é um excelente diálogo teatral e assim não se perde :-)
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